Fundamentação Teórica
A Importância da Criatividade no Contexto Educacional
[in Projeto Educativo do CSPN 2013-2016, por Marta Machado: 17-22]
Antes de uma breve
abordagem sobre a importância da promoção da criatividade no contexto
educativo, importa definir o conceito de criatividade. Das inúmeras definições
existentes para o termo, podemos afirmar que se trata de um conceito polissémico, controverso e de difícil definição, já
que é “um constructo extremamente complexo e difuso, que envolve muitas
dimensões ou facetas” e, como tal, “não foi suficiente que se chegasse a um
acordo sobre uma definição precisa, e universalmente aceite do termo” (Almeida,
1993: 115-116). Sousa (2005) descreve a criatividade como uma capacidade, uma
aptidão, definindo-se pelas obras que cria e é através delas que se torna
evidente. Por sua vez, a definição de Carl Rogers (2010: 400) “é que se trata
de uma emergência na ação de um novo produto relacional que provém da natureza
única do indivíduo, por um lado, e dos materiais, acontecimentos, pessoas ou
circunstâncias da sua vida, por outro”. De acordo com o dicionário da Porto
Editora (2011: s/ página), a criatividade é a “faculdade de encontrar soluções
diferentes e originais face a novas situações”. Assim, tendo em conta que a
criatividade produz conhecimentos novos, Sousa (2005) define-a como uma
capacidade mais importante do que a aprendizagem de conhecimentos. O mesmo
autor (idem, ibidem) faz ainda a distinção entre
criatividade e criação, sendo que a criatividade é a causa e a criação o
efeito. Para Taylor (1976), distinguem-se cinco tipos de criatividade: 1) criatividade expressiva;
2) criatividade produtiva; 3) criatividade inventiva; 4) criatividade
inovadora; 5) criatividade
emergente (só conseguida pelos génios).
Na sua obra «A Arte de Amar», o psicanalista, filósofo e sociólogo Erich
Fromm (2005: 26) menciona que a atividade criativa é uma das formas do homem
atingir a união com o mundo exterior/natural, ou seja, uma forma de ultrapassar
o sentimento de isolamento e de separação inerente ao homem – “em qualquer
espécie de trabalho criativo, o criador une-se ao seu material, que representa
o mundo fora de si”.
Neste contexto, convém
também ter presente que não há correlação entre a criatividade e a
inteligência. Guilford (1973) considera que a criatividade e a inteligência são
processos mentais distintos; dimensões amplamente independentes, ainda que sejam ambas importantes para o processo cognitivo. Contudo, a criatividade é exclusiva do ser
humano. Os estudos de vários
autores, como, por exemplo, Prieto & Sanchez (2005) e Getzels & Jackson
(1961) tornam evidente que, efetivamente, o nosso desempenho criativo não está
correlacionado com as nossas habilidades cognitivas, mas antes com a motivação
e habilidade académica. Getzels & Jackson (1961) observaram dois grupos de
alunos: adolescentes que tiveram um bom resultado nos testes de inteligência e
alunos que tiveram um bom resultado nos testes de criatividade. Como resultado,
o estudo concluiu que crianças altamente criativas tinham um desempenho escolar
superior ao de alunos com alto QI, apesar dos alunos altamente criativos terem
20 pontos de QI a menos que os alunos com alto QI. Desta forma, pode considera-se
que a inteligência é racional/lógica, já a criatividade é irracional, irrealista
e irresponsável. Porém, a criatividade torna plural qualquer tipo de
inteligência: inteligência lógico-matemática, linguística, musical, espacial,
corporal, interpessoal, intrapessoal, naturalista, entre outras (Ribeiro,
2002). Assim, para que possamos utilizar por completo o nosso potencial intelectivo/cognitivo,
a criatividade e a inteligência tornam-se necessárias.
Contudo, o estudo da
criatividade foi tardio. Só a partir da década
de cinquenta é que a psicologia revela um maior interesse pela criatividade,
com os contributos de Carl Rogers, Rollo May, Abranham Maslow e Guilford
(Almeida et al, 1993: 112). Segundo Matos (2005), o estudo da criatividade tem
aumentado, nos últimos anos, pela sua importância para o desenvolvimento
pessoal e social do individuo, não podendo, por este facto, ser descurado pela
educação. Para reforçar esta ideia, Alencar (2007) refere que alguns autores,
como Cropley, Guilford, Carl Rogers, Mackinnon e Torrance têm apontado
distintas razões para a importância de se cultivar a criatividade e
desenvolvê-la plenamente ao longo da vida. Carl Rogers, através da sua obra
«Tornar-se Pessoa», “explora a aplicação dos princípios da Terapia Centrada no
Cliente em outros domínios humanos, como a educação, as relações interpessoais,
familiares e criatividade” (Cavalcanti, 2014: 4).
Por seu turno, o
Ministério da Educação tem vindo a evidenciar, nos seus discursos, preocupação
com a criatividade. Reportando-nos à Lei de Bases do Sistema Educativo (alínea
f, do artigo 3.º, da Lei n.º 46/86), um dos seus princípios organizativos é
“contribuir para a realização pessoal e comunitária dos indivíduos, não só pela
formação para o sistema de ocupação socialmente úteis, mas ainda pela prática e
aprendizagem da utilização criativa dos tempos livres”. Também o ponto 5, do
artigo 2.º, capítulo I, Lei n.º 46/86, contempla a criatividade num dos seus
princípios educativos: “a educação promove o desenvolvimento do espírito
democrático e pluralista, respeitador dos outros e das suas ideias, aberto ao
diálogo e à livre troca de opiniões, formando cidadãos capazes de julgarem com
espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem
na sua transformação progressiva”. Além disso, quando se refere ao papel do
educador, afirma que as crianças e educadores são construtores de saberes,
“assim, os adultos valorizam o erro, a incerteza, a dúvida criadora”, não
evitando o conflito cognitivo (Ministério da Educação, 1998: 145). Acrescenta
ainda que o papel do educador incide, simultaneamente, na dinâmica relacional e
nos conteúdos, estando disponível e atento às necessidades dos alunos
(Ministério da Educação, 1998).
Ainda assim, estes documentos
normativos, na prática, não têm produzido os mesmos efeitos. O sistema
educativo tem fracassado na sua tarefa de desenvolver as habilidades criativas
dos discentes, porque “tende a subestimar as capacidades criativas do aluno e a
reduzi-las abaixo do nível das suas reais possibilidades” (Almeida et al., 1993: 111). Estamos diante de
“um modelo predominante de ensino que tende a bloquear e a reprimir a
criatividade, ou a minar a confiança do aluno na sua capacidade de criar, de
produzir ideias e de construir o conhecimento” (Almeida et al., 1993: 112). Como defende Rogers & May (Almeida, 1993:
113), isto acontece, porque o ensino sobrevaloriza o conformismo e a
passividade, não fazendo um esforço em “estabelecer condições propícias à
expressão tanto do pensamento criativo, como da curiosidade, da abertura aos
sentimentos e emoções, e de uma gama maior de interesses”. De
acordo com Alencar (2007), existem práticas pedagógicas inibidoras da
criatividade, como: as que promovem um ensino voltado para o passado,
privilegiando a reprodução e memorização do conhecimento; uso de exercícios com
apenas uma única resposta correta, cultivando-se o medo do erro e do fracasso;
estandardização do conteúdo, onde todos aprendem no mesmo ritmo e da mesma
forma; baixas expetativas dos professores, relativamente à capacidade dos
alunos produzirem ideias inovadoras; desvalorização docente de formas
alternativas de resolver problemas; centralização da instrução no professor. Os
estudos de Alencar (2007) indicam também a dificuldade dos
professores em romperem com práticas passadas, devendo incorporar,
intencionalmente, novas estratégias ou procedimentos que
promovam o desenvolvimento da capacidade de criar de seus alunos, apontando a formação
contínua (oficina/programa de criatividade), como um caminho a seguir pelos
docentes. Ribeiro (2002: 92) recorda que “há ainda entre os profissionais da
educação quem circunscreva a criatividade a um domínio específico (as artes),
associando-a ainda por cima a um raro salto de imaginação que só acontece a
pessoas muito especiais; ou quem, pelo contrário, a identifique com a pura
expressão livre, por definição ao alcance de todos”.
Por este facto, aos educadores compete, por isso, a
obrigação de estarem atentos, devendo, em contrapartida, despertar o aluno para
o seu potencial criativo (Almeida et al.,
1993). Para reforçar esta ideia, Lopez (2008) refere que a promoção da
criatividade em sala de aula torna-se possível somente quando há uma proposta
construtiva, centrada no aluno. Neste contexto, o professor é um facilitador
das condições criativas e é também ele criativo – O ideal seria então que “o
educador fosse, ele próprio, altamente criativo” (Ribeiro, 2002: 84). Assim,
para Fautley & Savage (2007) um
educador/professor criativo deve apresentar determinadas caraterísticas, tais
como: a) ser uma fonte de inspiração; b) conhecer bem os assuntos; c) ter
uma postura de aprendiz; d) fazer conexões e relações com outras disciplinas;
e) desenvolver grandes expetativas; f) estimular a curiosidade; g) incentivar
os alunos; h) equilibrar as aulas, dando tempo aos alunos para serem criativos;
i) encontrar o seu próprio estilo de ensino.
Biesta (2010) salienta que a educação tem três funções
complementares e inseparáveis: qualificação (aquisição de conhecimento e
habilidades), socialização (integração dos indivíduos na sociedade) e
subjetivação (promoção da autonomia, criatividade e liberdade de pensamento). A
criatividade na educação tem, segundo Joubert (2011), cinco conceitos
associados, sendo eles: a imaginação, o processo de formar, o propósito, a
originalidade e o julgamento do valor. Guilford (s/data citado por Sónia, 1992: 75)
acrescenta ainda que “a educação criativa está dirigida a formar pessoas
dotadas de iniciativa, plenas de recursos e confiança, capazes de enfrentar
problemas pessoais, interpessoais ou de qualquer índole”. No que respeita aos
métodos educativos, para Ribeiro (2002: 82), a atividade criativa pode
entender-se como: a) aprendizagem por descoberta, privilegiando-se o pensamento
divergente; b) aprendizagem por resolução de problemas, tendo presente que “se
pode chegar ao limite de um problema em que tudo são incógnitas”; c)
aprendizagem pela investigação, contando que “em terrenos completamente
desconhecidos não existe caminho algum”; c) aprendizagem por experiência
refletida, admitindo “que nunca a exigência de racionalidade pode amordaçar a
liberdade da própria experiência”. Ribeiro (ibidem)
acrescenta ainda que o processo educativo que possibilite ao aluno atingir o
exponencial criativo deve, portanto, centrar-se na errância (errar é divagar) e
no pensamento lateral, tendo uma função prospetiva, que imprime ao processo
cognitivo uma nova direção.
Uma outra forma de despoletar ou recuperar a criatividade das
crianças e dos adultos é através da brincadeira. Há, portanto que “reabilitar o
brincar e, sobretudo, o brincar a dois (ou em grupo)”, num registo
analógico/linguagem «analógica» – pensar em imagens (Ribeiro, 2002: 37). No
período pré-escolar, como refere Jean Piaget (s/data, citado por Cavalcanti,
2014), a brincadeira, sendo o berço obrigatório das atividades intelectuais
infantis, é mais importante do que imaginamos. Desta forma, Cavalcanti (2014:
17-18) afirma que “brincar é coisa séria”, porque, além de favorecer o
intelecto, é “uma das formas mais eficientes que a criança possui para conhecer
e se inserir no meio em que vive”. Por meio da brincadeira, a criança descobre
a si mesma, vivencia o lúdico, aprende a realidade e desenvolve o seu potencial
criativo (idem, ibidem). Por isso, é
também necessário repensar o uso excessivo de entretenimentos visuais passivos
pelas crianças, tais como a televisão, o computador e o vídeo game (idem, ibidem),
pois este tipo de distrações não se coaduna com o desenvolvimento da
criatividade. Klein (s/data citado Cavalcanti, 2014: 19) indica que “é no
brincar que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar a sua
personalidade integral: é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o seu
eu (self)”. Winnicott (s/data citado por Cavalcanti, 2014) afirma que a
qualidade do brincar é sinónimo de viver criativamente; somente por meio da
brincadeira é que o indivíduo poderia ser criativo. “A criatividade e a
imaginação dentro da brincadeira possibilitam que a criança crie um modo de
vida particular, ou seja, o ser vivencia o seu self verdadeiro” – só através da
brincadeira, o self é descoberto e fortalecido (Cavalcanti, 2014: 19).
Martinez (2003: 73) alerta-nos ainda para a importância de
promover a criatividade nos portadores de deficiência, “pela significação que
os processos e as realizações criativas têm para o desenvolvimento da
subjetividade e para a saúde psicológica” da criança e porque, acima de tudo,
não se trata apenas de uma criança com deficiência, mas de uma criança.
Contudo, há poucos estudos científicos sobre o tema, verificando-se
insuficiente articulação entre os conceitos: criatividade e deficiência. Uma
das possíveis razões deste distanciamento justifica-se pelo facto da psicologia
e da pedagogia da criatividade terem considerado, durante muitos anos, a
criatividade associada a elementos de ordem cognitiva (idem, ibidem).
Logo, esta conceção errónea “não era compatível com a deficiência, sendo
difícil que a criatividade encontrasse um espaço na caraterização das crianças
consideradas deficientes (Martinez, 2003: 75). Outra provável razão deste
afastamento deve-se à “hipertrofia do caráter instrumental da criatividade” – a
significação da criatividade direcionada para o desenvolvimento socioeconómico
(idem, ibidem). Antes de tudo, é
preciso valorizar os contributos da criatividade para o bem-estar emocional e
desenvolvimento pessoal da criança e adulto (idem, ibidem: 76). Neste sentido, há que “mudar o foco de análise
da deficiência concreta para o sujeito como um todo, considerando não apenas os
seus pontos fracos, mas as suas características mais positivas, para compreender
as suas potencialidades criativas e as suas potencialidades de desenvolvimento
(Martinez, 2003: 80). Por exemplo, uma criança com limitações intelectuais
consideráveis não poderá atingir um nível de pensamento lógico-matemático para
ser suficientemente criativa na física ou na matemática, mas pode manifestar
criatividade na expressão corporal ou no artesanato (idem, ibidem).
Para finalizar, torna-se pertinente evocar Toynbee (s/data citado
por Vovaes, 1997: 15), alertando que não dar oportunidade justa à criatividade
é matar uma sociedade, porque, como observa Alexander (s/data citado por Alencar,
1991: 30), “um povo sem criatividade está condenado à escravidão”. Tal como
refere Ribeiro (2002: 86), não se imagina o risco que correriam as crianças, que
hoje brincam e sonham livremente nos jardins de infância, “se um governante
iluminado, percebendo que é desde pequenino que convém disciplinar o pensamento
e o comportamento dos cidadãos, decidisse integrar plenamente a educação
pré-escolar no sistema educativo que temos”, onde impera a lógica e o
pragmatismo. Porém, convém estarmos atentos ao facto da sociedade atual priorizar
o trabalho, no sentido produtivo, e a razão/objetividade, e, como tal, não
surpreende que as sucessivas aquisições que são proporcionadas à criança, ao
invés de construírem novos apelos ao imaginário, são antes novas pontes para o
real (idem, ibidem).